A insuficiência e a incapacidade de amar
Os impactos da colonização e suas ramificações (patriarcado, racismo, capitalismo etc.) estão diretamente ligados à insuficiência e à incapacidade de amar.
O colonizador – diante da insuficiência sobre si e a incapacidade de amar a si mesmo – reconfigura a psicologia do corpo colonizado para a incapacidade de amar por meio de reforços negativos que geram a distorção cognitiva no ser-objeto-colonizado quanto à insuficiência sobre si, logo, à incapacidade de amar a si mesmo.
Um jogo narcísico do desamor.
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Desde a infância até meus trinta anos de idade, me sentia completamente insuficiente e incapaz de me amar; insuficiente e incapaz de amar ao próximo.
Contudo, no jogo narcísico do desamor, manobrada por colonizadores determinantes na minha formação e vida amorosa, até então – pai, mãe e ex-companheiro violentadores e abusadores psicológicos -; eu, enquanto ser-objeto-colonizado, tive o meu corpo sensível (aquele capaz de produzir amor seguro e consciente) neutralizado e manobrado em prol da ilimitada e centralizadora nutrição do ego de tais colonizadores: nasci e cresci enquanto suprimento de predadores emocionais.
Tais representantes da destruição, dos -ados e dos -ismos, também se fizeram presentes na minha formação escolar e demais vínculos, como o profissional e de “amizade”. Tornei-me vítima do progresso e do pessimismo alheio: a filha, a amiga, a profissional, a esposa, a namorada, de alguma forma, insuficiente.
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Mal pronunciava as palavras, tinha cometido o equívoco de ter nascido insuficiente.
O erro de não saber me expressar sob códigos femininos. Ora, eu não me vestia certo. Ora não me portava corretamente. Tirei qualquer relógio e pulseira do meu pulso, parei de usar qualquer calção ou demonstrar qualquer trejeito que pudesse parecer masculino demais. Mas a insuficiência estava sempre lá, no mesmo lugar.
Ora eu não pronunciava bem as palavras, não entendia bem os sentidos, não demonstrava a mesma atenção nem capacidade que os demais. Troquei a reação espontânea pelo medo de interagir. Preferi, mais, observar. Mas a insuficiência estava sempre lá, no mesmo lugar.
Fui apredendo sobre o perigo em me expressar como eu realmente era e fui aprendendo a ser o que eu verdadeiramente não seria. Amarrei e alisei muitas vezes meu cabelo contra a minha vontade para evitar ouvir o outro colonizador elencar minhas insuficiências sem ser demandado: cabelo de fogo, bombril, pixaim.
Aprendi a pintar as unhas e a me maquiar. Usar roupas mais femininas. Andar de salto. Sentar com as pernas cruzadas. Cozinhar, lavar, passar. Ter um emprego, uma casa, um casamento. Sentir-me a única responsável pela felicidade da famíla, o bem-estar do outro colonizador acima de qualquer eu.
Mas a insuficiência continuava lá, no mesmo lugar: em mim.
O excesso e as máscaras de narciso
Diante da insuficiência que o ego-colonizador implantou em mim, visando a exploração – via a dessensibilização – do meu corpo, tornei-me o vazio, a falta, o erro, o negativo. No jogo do espelho ou do contrário, meu anverso será Narciso.
Narciso manobra a insuficiência do ser, a fim de apossar-se do corpo decolonizado, dessenssibilizando-o, prometendo o excesso ao corpo negativado: a completude, o outro lado da moeda, a tampa da caçarola, a peça que faltava no quebra-cabeça do amor.
[texto em construção]