Simpatia

Ainda pequena, eu já demonstrava um sério problema com a rejeição e a injustiça. Então, lembro que alguns colegas do colégio, no Ensino Fundamental I, tinham privilégios para andar na parte da frente da Kombi escolar, enquanto notei que a mim o argumento era sempre o mesmo: eu não tinha idade nem tamanho o suficiente para sentar no cobiçado lugar.

Até que notei que muitos dos colegas eram do meu tamanho e, por fim, vi um menino menor do que eu sentar na parte da frente da Kombi.

Coisas assim me revoltavam de tal forma que eu só queria sumir. Era indigesto para mim me sentir rejeitada e ainda injustiçada.

Então, lembro de estar em casa ruminando tais sentimentos em que só via duas possibilidades de resolução: eu deixar de existir de um dia para o outro para nunca mais entrar naquela Kombi e não ter mais que olhar para os condutores ou esquecer a existência de ambos e o que eu tinha notado e como me sentia.

Ou seja, na minha cabeça, se resolvia a rejeição e a injustiça acabando com a presença simbólica seja dos causadores, seja de mim.

Enquanto divagava as possibilidades de resolução, pois já não aquentava mais aquelas sensações circulando na minha cabeça, me lembrei que tinha lido na seção de passatempo de uma revista de fofocas das minhas primas uma simpatia para esquecer alguém: escrever o nome da pessoa em um papel e colocá-lo no congelador.

Depois de alguns dias cogitando se seria certo ou não fazer a simpatia (já que essa ação era vista como macumba e feitiçaria no meu entorno familiar), mas diante da aflição em não conseguir me livrar do sentimento de rejeição e injustiça que eu permanecia ruminando e que era reativado a cada momento (duas vezes ao dia, de segunda a sexta-feira) que eu tinha de pegar a Kombi escolar e ainda me deparar com as contradições dos condutores, eu resolvi seguir a orientação de esquecimento proposta na simpatia.

Então, voltei a ler as instruções da revista, trouxe papel ofício e um lápis. Cortei o papel em algumas tiras e escrevi o nome dos dois condutores em duas delas. Dobrei os papéis, fui no congelador e escondi a simpatia na espessa camada de gelo da parte de baixo do congelador, já que a geladeira funcionava pelo sistema de degelo.

Não lembro com precisão o que fiz depois de colocar os papéis. Creio que achei uma bobagem aquilo. Lembro-me vagamente que fiquei um tempo pensando a efetividade daquela simpatia. Não sei quantos minutos ou até mesmo dias se passaram. Mas em algum momento preferi não ficar presa àqueles nomes congelados. Então, tirei os papéis do refrigerador para que a minha mãe não visse nem me perguntasse o motivo. Em seguida, descartei-os no lixo.

Depois disso, não sei exatamente quanto tempo, porém, já com importância gradativamente menor, os dois condutores já não tinham qualquer impacto sobre mim. Provavelmente foi nessa etapa que aprendi a diminuir a influência das dores que sentia por alguém não cumprir com a minha expectativa ou não demonstrar justiça nos seus atos.

Não me recordo se foi antes ou depois desse episódio que eu consegui andar uma vez na parte da frente da Kombi. Até que apareceu uma borboleta e o motorista comentou que se ela batesse em nossos olhos, ficaríamos cegos. Tanto eu como um colega que estava do meu lado ficamos muito assustados com aquilo.

Então, cheguei à conclusão que era melhor um lugar pior do que perder a visão.

Apesar disso, cada vez que meu nome era esquecido como uma possibilidade de andar na frente, eu me sentia rejeitada e ainda injustiçada, porque não se cumpria a fila dos próximos alunos que poderiam entrar na parte da frente da Kombi.

Quem não era tímido, se adiantava em pedir para ir na frente e logo tinha o desejo atendido inúmeras vezes.

Já a minha introspecção aliada ao medo ou desatenção de impor as minhas vontades me limitava a julgar, intimamente, a falta de organização e incoerência dos condutores para quem precisava de uma postura mais atenciosa e justa.