Rótulos Nocivos

“Ela é sonsa”, foi a primeira coisa que ouvi de uma desconhecida, depois de eu ter proposto que adivinhassem qual seria o meu signo, com a intenção de tentar me enturmar e também animar o clima do local. Eu olhei para aquela moça – até então com um comportamento de plateia das suas amigas, sempre calada ou sorrindo -, mas que agora assumia uma postura ativa contra mim para apontar um traço negativo com quem ela não tinha se interessado em estabelecer qualquer diálogo. Sempre passiva e observadora, sequer compartilhando do mesmo alimento e bebida da festa, apenas gastava a sua saliva para atestar o quanto os seus pais eram bons com ela e com as amigas.

Ao ouvir a ofensa, eu sorri ironicamente, como costumo fazer nessa situação – bastante recorrente, aliás – quando estou em estruturas tóxicas. Algumas pessoas também riram com o comentário dela.

Nossos atos diante das ações e falas do outro também são capazes de nos revelar.

Horas depois, ao lembrar do ocorrido, a companheira da minha amiga me justificou que aquela moça era daquela forma, e fez um comentário clichê, algo como, se eu estivesse ali deveria aguentar esses comentários, pois havia sinceridade nela.

Me pergunto em que a justificada sinceridade estaria apoiada. Talvez sob o contexto de mundo daquela moça que, nos seus prováveis trinta e dois anos de idade, só conseguia enaltecer a bondade dos pais para com ela e as suas amigas nos tempos de bebedeiras de adolescência. Comentários que ela só fazia para concordar com alguém e somente quando era incitada. Era preciso sempre falar bem dos pais e concordar com as amigas.

O que ou como o outro me julga fala mais sobre ele mesmo e o seu pensamento do que de mim mesma. O que penso e como julgo o outro é o que revelo sobre mim.

Horas antes, todas tinham falado sobre os seus signos, mas notei que não se atinaram em me integrarem à conversa, embora eu risse durante as falas e fizesse inúmeros comentários sobre como uma das moças, uma geminiana com ascendente em virgem, que era tão controladora pela via da crítica que mais parecia ter o mapa astral repleto de virgem (simplificação e preconceito meus).

Eu preferi intensificar essa postura depois que propus tocar uma música popular de Selma do Coco, “A rolinha”, e apenas a minha amiga ter entrado com o coro, me acompanhando. Ao final da nossa performance, a moça com ascendente em virgem e sol em gêmeos fez questão de comentar que pegaria um cigarro aceso e fez um gesto simulando como se queimasse o braço com o tal do cigarro imaginário, fazendo uso de uma difamação clichê. Ainda falou algo como: quero sentir outra dor para esquecer esta (de ouvir a gente cantando Selma do Coco). Talvez esteja nesse comentário clichê seu sol geminiano (mais uma vez, simplificação e preconceito meus).

À parte as explicações astrológicas, interpretei que essa moça estava tão desconectada de si que precisava controlar constantemente a sua companheira e todos que estavam ao seu redor, sempre por meio de gestos e falas de desprezo. Ela precisava ser vista, denunciando certo medo de ser esquecida ou abandonada pelos que estavam ali presentes. Para tanto, criava seus próprios meios para ter a sua imagem constantemente lembrada, mesmo que fosse pela via da difamação e desprezo, isto é, objetificação do outro.

O clássico falem mal, mas falem de mim. Ou melhor, falo mal, mas falo, para assim compensar um possível complexo de inferioridade, acoplando um comportamento hierárquico, em que ela se colocava no topo ou no centro, obviamente, para se sentir melhor que o outro (que é punido provavelmente por ter ativado alguma vulnerabilidade dela). Isto é, ela precisava nos transformar na sua oposição negativa. Éramos penalizadas por não espelhar o seu ego. Para tanto e por isso mesmo, revelando, também, tanto medo do diferente, do desconhecido ou do que saía de seu domínio, que minutos antes tinha feito uma performance de desaprovação sobre a sua companheira, quando comentei que havia trazido o pandeiro.

Eu já estive nesses dois papéis: já reprimi e já fui reprimida. Agora, não quero mais socializar dessa forma com qualquer pessoa que seja, muito menos ser alvo desse tipo de interação nociva de repressão e desprezo. Não sou espelho de nenhum narciso ou narcisa.

Ao questioná-la sobre o motivo da sua performance, pois eu não entendia o que tanto a ascendente em virgem com sol em gêmeos reprovava fazendo um movimento negativo com a cabeça. Até que, finalmente, ela me explicou, diante da minha insistência, que sua companheira gostava de batucar pela casa. Então, sorri e me animei em passar o pandeiro para a aspirante a percussionista, que se alegrou em me mostrar como tocava o pandeiro, me pedindo para dar a minha opinião. Ela tocava bem, mas não se empolgou em continuar tocando. Na hora não pude dar a atenção necessária, enquanto afinava o violão, mas depois me preocupei em elogiá-la. Ensaiei tocar um samba, porém, definitivamente, ninguém estava disposto a congregar com a música percussiva, e àquela altura, muito menos eu. Pediram para que eu tocasse MPB no violão, mas logo desisti e expliquei que não sabia tocar música daquela forma, justificando que tocava violão para compor minhas próprias músicas. Logo, o silêncio e o caixinha de som com brega funk tiveram maior adesão.

* * *

Para mim, a astrologia se transformou numa ótima ferramenta de socialização, além de simplificar traços de personalidade em mim e nas pessoas, o que me livra de ter de fazer grandes ponderações ou investir muita energia ao propor diálogos ou temas para familiarização. Do contrário, ou me calo ou corro o risco de entrar em tópicos complexos com pessoas que pouco conheço. Por outro lado, o excesso de astrologia pode simplificar tanto uma conversa, a ponto de não restar conteúdo possível de manutenção nesse tema.

Penso que os signos são como peões que a gente move pouco a pouco pelo tabuleiro, apenas para permitir a investida de peças mais arrojadas.

* * *

Horas se passaram e muito mal movi meus peões naquele grupo de mulheres já enturmadas entre si. Enquanto que eu e a minha amiga que havia me convidado para a sua festa, não nos víamos há mais de uma década. O período em que mais conversamos foi nas aulas de francês, ainda no ensino médio. Retomando recentemente com o tema do violão, via rede social.

Logo de início, ela, ao me apresentar para seu círculo de amizade e companheira com quem é casada, demonstrando um possível orgulho e carinho por mim, explicou como nos conhecemos, enfatizou as minhas inúmeras qualidades e habilidades sobre como, para ela, eu era a pessoa mais inteligente e criativa que conhecia. Rasgou seda para mim, enquanto eu reagia à recepção calorosa com um sorriso tímido. Eu costumo ficar retraída com elogios, assim como ocorrem com os abraços.

“Você não gosta de abraços, mas eu vou te abraçar”, foi o que me falou, uma vez, a diretora de uma escola em que trabalhei como professora de português. Ela adorava dar abraços, mas eu provavelmente não me mostrava muito receptiva, ou melhor, tímida, acanhada. Eu sequer tinha notado que ela gostava de abraçar as pessoas. Penso que ela se reprimia quanto a mim, até que em uma ocasião mais emotiva, provavelmente ela não suportou mais se conter e me deu um longo e apertado abraço. Eu sorria, sem jeito, mas me sentindo bastante acolhida.

Quando nos reprimimos pelo outro, nos abandonamos, não nos permitimos ser.

Receber elogios é um processo mais antigo que passei a aceitar por meio de padrões de reação. Porém, por vezes, ainda não sei como reagir, além do velho sorriso tímido e contente, diante de um comentário positivo e inesperado sobre mim.

“Eu não gosto quando você fala mal de você”, “Pare de falar que é chata.”, “Você não é chata”, me desabafou minha ex-namorada, na época em que ainda éramos amigas. Até, então, eu não sabia que me depreciava tanto.

Elogiar é um ato que só fui aprender no relacionamento homoafetivo que tive com ela. Me autoelogiar é ainda mais difícil, mas necessário para se evitar apagamentos, ainda mais quando se é mulher.

Nos momentos mais profundos de mergulho nas minha dores e traumas, incompetente em escrever qualidades minhas numa agenda velha, exercício que me propus fazer para melhorar a minha autoimagem, recorri a minha companheira na época: “Preciso ouvir coisas boas sobre mim, por favor”. Imediatamente eu recebia diversas mensagens de texto com várias qualidades. Era um misto de autopercepção e choro, como agora: eu tinha tudo aquilo de bom? E foi assim, retribuindo e por assimilação, que aprendi a reconhecer coisas boas em mim e também a elogiar as outras pessoas.

Infelizmente, não foram de elogios as últimas palavras que encerram as conversas desse antigo relacionamento.

# # #

“Ela é sonsa”, falou um professor de física para mim, com certo ódio e tom acusatório, me olhando rapidamente. Eu não me recordo de algum dia ter tido aula com aquela figura que eu só tinha ouvido falar pela boca da minha prima, com quem eu estudava na mesma escola, no ensino médio, embora não compartilhássemos do mesmo círculo de amizade. Lembro que ela costumava comentar sobre o tal professor de física como uma verdadeira fã. Ele seria, para ela, o melhor professor da escola.

Não me recordo por qual motivo eu estava junto ao professor e a minha prima, nem muito menos o que se estava conversando na hora para que ele, sem me conhecer pessoalmente, me difamasse.

Após o comentário desse “docente” sobre mim, a minha prima deu uma larga risada. Claramente, ela sentiu prazer em ter ouvido aquele comentário.

A minha reação foi a de surpresa. Provavelmente levantei as sobrancelhas e sorri ironicamente, como costumo fazer nessa situação, sem entender o motivo da acusação. Não lembro de ter comentado nada após ouvir a ofensa, sequer me defendido, porém me recordo que fiquei confusa com aquela fala.

“Paraíba, masculina, mulher macho, sim, senhor” cantarolavam os meninos da escola para mim, ainda nos anos iniciais, sempre sorrindo com alegria incomum. Claramente, eles sentiam prazer ao cantarolarem isso.

“Matuta”, era o que ouvia dos meus pais e de seus familiares e até da minha mãe devido à minha timidez e insegurança em me expressar com confiança.

Ironicamente, “matuta” e “paraibana” foram as mesmas ofensas ouvidas pela minha mãe, proferidas tanto pelo meu pai e seus familiares, como por amigos, durante uma vida inteira.

Hoje sei que, esse ódio, essa vontade de difamar e destruir o feminino, vinda de um homem ou de alguém com comportamento macho, trata-se de misoginia.

# # #

“Você gosta de se amostrar”, foi o que ouvi da minha mãe, quando eu era ainda criança, porque eu falava, dançava, me movimentada em excesso, alegre pela presença de algumas amigas ou, por vezes, familiares. Era como eu reagia quando ficava contente em ter a presença de alguém. Embora normalmente eu fosse calma, sempre performava alegria, movimentando o corpo e falando em excesso quando me sentia bem ou feliz com algo ou com a presença de alguém.

Eu não tinha mais que sete anos de idade e não tinha sido a primeira vez que eu tinha ouvido esse tipo de comentário e, diante da recorrência de uma mesma constatação de outra pessoa sobre mim – vinda da minha mãe, uma forte referência -, o comentário dessa vez tinha gerado um impacto mais afirmativo. Então, ao sentir aquele julgamento, baixei gradativamente a energia, ao passo que ponderava aquela afirmação sobre mim e concluí: eu gosto de me amostrar, só estou fazendo isso para me amostrar, estou sendo falsa, estou sendo ridícula. Frases que repeti como um mantra, até inibir ou anular qualquer expressividade que pudesse existir dentro em mim.

A partir de então, demonstrei cada vez menos alegria com a presença das pessoas que gostava. Preferia sequer estabelecer vínculos que pudessem me tirar do meu autocontrole. Ao passo que essas próprias pessoas também deixaram de frequentar a minha casa. Desde então, a minha nova reação seria de quase apatia, para evitar que qualquer performance de alegria pudesse ser rotulada como falsidade ou loucura.

# # #

“Ela é sonsa”, foi a primeira coisa que ouvi de uma desconhecida, depois de eu ter proposto que adivinhassem qual seria o meu signo, com a intenção de tentar me enturmar e também animar o clima do local. Ao ouvir essa afirmação, algumas pessoas riram.

“Ela é sonsa”, foi o que ouvi daquela moça que até então assumia uma postura passiva e agora pensativa. Ela me analisava como quem resolve um problema matemático. Talvez tentando associar aquela sua afirmação pejorativa e um tanto violenta de uma pessoa que mal conhecia a um signo qualquer.

A essa altura, eu já sorria na expectativa – ou quase certeza – que ela não acertaria o meu signo solar. Era preciso que aquela moça tivesse uma profunda autocrítica para obter sucesso. E eu desconfiava satisfatoriamente disso, já que ela teria de fazer o duro papel de autorreconhecimento para adivinhar o meu signo. O que ela não demonstrou em momento algum, escondendo-se nos comentários das amigas e sobre os seus pais, abdicando-se de si.

Meu ego inflou. Eu tinha proposto um desafio, estava finalmente sendo o centro das atenções (embora não duraria muito) e ainda provocaria uma meta-análise em quem havia me julgado precipitadamente.

A maioria respondeu que eu seria canceriana, como normalmente acontece, já que costumam associar a minha personalidade a meu ascendente.

Não. Segundo a astrologia, eu não sou canceriana.

Dei a resposta olhando primeiro para aquela moça que tinha o signo tão sincero e sonso quanto o meu. Claramente, senti prazer em falar para ela o meu signo solar, enquanto sorria ironicamente, como normalmente faço após uma difamação, olhando nos olhos de quem me acusa.

Eu ainda tive de repetir várias vezes o meu signo, até todas perceberem que havia mais de uma ariana lá.