Desejos à la carte

A música toca o passado que já teve um presente repleto de expectativas e promessas; de futuro.

Nunca se concretizarão.

Descobri que muita gente já tem perdido a capacidade de olhar nos olhos, ouvir histórias, sentir o toque, in praesentia, in loco.

Concretizar é materializar.

A vida agora pulsa no touch screen, e o que nela se materializa?

Descobri mais uma norma social a qual não me enquadro – e nem oito anos de idade tenho mais: a materialização do desejo. Mesmo aqueles que passam a vida desejando uma caneca, uma bolsa, um sapato, uma viagem, um simulacro de existência nas infinitas sequências de stories e feeds, se consideram capazes de ditar a regra da materialização do desejo.

Há tempos que os rostos e corpos viraram pedido à la carte nas telas dos smartphones.

Mas eu não estou autorizada a dizer que amei ou sou capaz de amar uma mulher.

E se assim for. Não estou autorizada a dizer que amei ou sou capaz de amar um homem – e, sinceramente, preferia essa simplicidade com que se costuma encarar os desejos.

Se assim fosse, 50 tons de cinza não teria sido best-seller.

Mas se opino sobre essas relações: racionalizo demais, se me posiciono, sou radical demais.

Percebi tarde demais que externalizar com abertura ou honestidade a forma com que lido com meus próprios sentimentos não me dão muito crédito social. O mundo – capitalista e logo patriarcal e racista – dos bem-sucedidos se faz pela ocultação das intenções. E eu não sei esconder por muito tempo.

Mas se quem julga opina, está autovalidado.

Quantos matchs você já conseguiu hoje? Eu não desejo nenhum deles.

Mesmo aqueles que resumem o outro às próprias projeções, traumas e expectativas se consideram capazes de ditar a norma da materialização do desejo – e só podia ser.

Nunca vi coerência nos julgamentos.

Descobri que ainda sou a mesma estranha de sempre, sofrendo as pressões sociais de sempre. Só que agora mais segura de mim. Segura demais de mim.

E isso para uma mulher, para uma mulher pobre, é estranho demais, é intenso demais, é louco demais, é inconstante demais, é imprevisível demais. Sempre fui demais.

Falava demais. Calada demais. Brincava demais. Sorria demais. Sincera demais. Crítica demais. Inteligente demais. Desligada demais. Ingênua demais. Chata demais.

Meu jeito adjetivado à la carte do desejo do outro.

“Você deveria entrar numa bolha e viver lá”. E como socializamos hoje em dia? Aos 13 anos de idade estava sendo alvo só de mais uma invalidação; e preveram a forma mais infantil de socialização do final do século XX e início do XXI.

Mas a verdade é que sempre tenho espinhos demais pra viver dentro ou próximo da sua bolha sem que eu corra o risco de estourá-la.

Ninguém gosta de intensidade. Mesmo quem passa horas na tela do smartphone vendo a mesma pose da mesma pessoa com a mesma recorrência com que a linguagem de programação do meu smartphone repete o zero e o um para que eu escreva este texto de uma forma mais intuitiva.

Descobri que posso escolher com quem e onde desejo permanecer e que tenho autonomia para decidir se perco meu tempo ou aproveito as oportunidades.

E não perco mais meu tempo. Não perco a oportunidade de deixar ir. Muito menos perco a oportunidade de desviar meus caminhos de pessoas normais demais, óbvias demais, intelectuais demais, simplistas demais, legais demais, desconfiadas demais, silenciosas demais, ouvintes demais.

Meu corpo, meu jeito é muito mais desviante do que se costuma projetar.

Não sou nem tão boa nem tão má. Nem tão burra nem tão inteligente. Nem tão desligada nem tão atenta. Nem tão bonita nem tão feia. Nem tão rígida nem tão flexível. Nem tão séria nem tão boba como alguém provavelmente já me julgou que eu poderia ser.

Quer me conhecer o mais próximo possível do que eu possa ser? Converse, pergunte, opine de forma sincera (com você mesmo.a.e) e chegará, irremediavelmente, até mim. Saia dessa bolha que insiste em se colocar e quer me enfiar junto. E se tivermos sorte, nos conheceremos o mais próximo possível do que podemos ser nesse conjunto, nessa troca – e aos matcheiros.as.es de plantão, “conhecer o mais próximo possível” ou estabelecer “trocas” não se resume ao mundo dos relacionamentos amorosos ou experiências sexuais.

“Não vamos sequer nos encontrar para nos dar um ‘oi’?”. Os impactos das minhas próprias palavras ainda reverberam no meu corpo. Contaminam este texto, meus pensamentos.

Estou sempre buscando unir os meus desejos com os de outrem. Os caminhos não se cruzam.

Já não me arrisco a desviar trilhos e rotas. Abandonei o que é dispendioso para mim.

Não tenho vocação para loucuras de amor. Não tenho vocação para desequilíbrios. Desrespeitos. Não tenho vocação para viver muito tempo sob a luz da projeção.

Another day. Eu quase não sei inglês, mas o título e a música me acalantam. O sentimento precisa apenas ser deixado sentir.

Pois amanhã é outro dia, como sempre foi.