Organizando algumas tralhas no quintal, notei o gato concentrado e olhando fixamente para o chão. A pose de monitoramento do seu corpo denunciava a captura de algum bicho. Ao me aproximar, vi que o infortúnio tinha sido reservado para mais uma pequena lagartixa que, intacta, ainda demonstrava estar viva, embora impossibilitada de se mover pelas patas do felino.
Dias depois dessa cena, acabei encontrando o corpo morto de um pássaro novinho que não teve a mesma sorte da lagartixa. Assim são os predadores emocionais: não há limite de idade para que se realize o ataque. O importante é fazer valer o seu instinto de caça, é ter uma presa, pois são incapazes de lidar com as suas mentes e garras desocupadas: não suportam o vazio da sua existência.
Segurei o gato nos meus braços para a lagartixa fugir.
* * *
Minutos depois de libertar a lagartixa, já em outro lugar do quintal, notei o gato com uma pose incomum: agora, já não aparentava a mesma necessidade de buscar uma presa, apenas descansava do calor num ponto sombreado. Mas algo tinha me chamado a atenção: ele estava demasiadamente relaxado, quando comparado a outras situações similares. Desconfiei daquela profunda paz. O gato nem cochilava nem indicava estar em alerta, buscando uma caça. Apenas contemplava o nada, mergulhado dentro de si, como quem experiencia o gozo.
Curiosa, me aproximei novamente do felino. A mesma lagartixa estava lá, mais uma vez sendo uma presa, imobilizada pela pata do gato que repousava despretensiosamente e sem qualquer esforço sobre o que ainda restava da cauda da lagartixa, já com a barriga para cima, em uma posição completamente vulnerável. Repreendi o gato e me aproximei da lagartixa completamente imóvel. Lamentei a sua morte, enquanto que o felino, como quem medita, continuava indiferente à minha movimentação.
Penso em deixar o gato se satisfazer com a reincidência do triunfo sobre a caça que não dava qualquer sinal de vida. Ameaço a retirada, mas tomada por uma vaga esperança, me reaproximei para analisar a lagartixa ainda mais de perto, quando percebi que a barriga dela se movia freneticamente.
O pulmão denunciava a sua estratégia de sobrevivência. A vida ainda pulsava com urgência. Mais nenhuma outra parte do corpo se mexia, sequer a perna cortada pelas unhas do felino. Apenas o ar inflava e murchava as membranas do réptil em milésimos de segundo.
Repetindo toda a cena anterior, puxei o gato novamente para que liberasse a lagartixa que se fingia de morta.
Se fingindo de morta, a lagartixa era uma sonsa magistral.
Ao puxar o gato, ambos os animais foram mais rápidos e habilidosos do que eu esperava. Enquanto o felino se debatia contra meus braços para não perder a posse sobre a presa. Em um ligeiro movimento, a lagartixa correu para se proteger num amontoado de material de construção que estava próximo à parede.
Percebendo a sua presa escapar, focado em retomá-la e se debatendo para sair das minhas mãos, o gato uniu todas as suas forças e habilidades para se desprender sem que me machucasse e assim recuperar o poder sobre a sua caça.
Apesar da agilidade tanto do gato como da lagartixa, mesmo assim consegui imobilizar o felino pela sua parte traseira, trazendo-o para junto do meu corpo. Me levantei, abraçando-o. Tentando estabelecer um diálogo inútil com o felino, levei-o para outra área do jardim, a fim que esquecesse a lagartixa, já abrigada das garras de seu predador, num espaço seguro, entre as tralhas do quintal.
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